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Entrevista com Marcelo Serodre

Como se deu seu primeiro contato com a obra do autor Milton Rezende?

No meu caso conheço a poesia do Milton desde sempre, pois começamos a escrever praticamente na mesma época do colégio e mostrávamos os poemas um para o outro.

Você identifica em algum dos livros que ele já publicou características românticas como o spleen?

Realmente, em todos os livros há esse tom de spleen, um tom mordaz de uma poesia urbana, herdado naturalmente, e até subconscientemente, de Baudelaire. Mas poetas como Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos e escritores como Lovecraft e Edgar Alan Poe exerceram um papel muito importante na formação artística do Milton

É possível identificar, ainda, no estilo de escrita, ou em algum poema específico características deste período literário?

Sim, podemos identificar muito facilmente essas características em muitos poemas de qualquer um dos livros. Para exemplificar poderíamos citar o poema "Saldo" de "O Acaso das Manhãs". Devo dizer que há muitas outras facetas importantes na produção poética do Milton. Mas a busca, a condução, a extrema capacidade do poeta de lidar com temas de um desespero lúgubre e até macabro, fazem dele um poeta singular de muita força.
SALDO
De cotidianos resíduos
arrancados na solidão de prisioneiro
em que todo meu ser se devora,
tento compor uma imagem humana
que me faça aceitável a mim mesmo.
No silêncio da morte aparente
na qual me recolho ao túmulo previsto
não sei com que ânsia mórbida de calma,
procuro juntar os cacos de culpa diária
que reunidos formam um apelo ao suicídio.
E não é só o remorso das manhãs doentias
pelo que na noite se desfez em delírios
de humana fraqueza cansada de si mesma,
é todo um saldo de perdas que tenho que fazer
e lançar no cômputo geral das misérias minhas.
De cotidianos resíduos
recolhidos no isolamento mental de indivíduo
em que todo o meu ser se liberta,
tento compor uma imagem poética
que se faça de ideias e despreze a vida.
(REZENDE, O acaso das manhãs. p.11)

Para você qual o aspecto mais significativo nas obras do autor Milton Rezende?

Como eu disse acima o tema da morte e da precariedade são a substância da obra. É claro que também, como em tantos poetas, a solidão, a renúncia, a raiva, o desacato à sociedade, a impossibilidade de viver nessa sociedade, escondem sem esconder, o desejo profundo de amar e ser amado. Mas a técnica literária é muito boa.

Para você, qual é a função do escritor?

Não sei ao certo. Mas acho que o escritor não tem função. Para o verdadeiro escritor, escrever é uma necessidade, uma função em si. Se o escritor é bom é bom para os leitores que ele exista.

Com o fácil acesso à internet, tornou-se mais fácil para um autor divulgar seu trabalho. Você considera que houve uma banalização da literatura por causa disso?

Não. De forma alguma. Mudam os meios mas a literatura é incorruptível e sempre haverá escritores incorruptíveis. Aliás posso dizer o mesmo de todas as artes.

O que você considera necessário para que um autor se sobressaia entre os outros?

Necessário mesmo (mas jamais garantido) é dar a cara a tapa, sair, enfrentar e deixar a preguiça de lado, deixar de lado a timidez. Mostrar a obra para os outros. Mas a busca cega por sucesso é a coisa mais estúpida que um ser humano pode fazer. Se escrevemos é porque queremos mostrar o que escrevemos. Se pintamos é porque queremos mostrar o que pintamos. Mas sejamos sensatos, não é mesmo. Ou talvez totalmente insensatos!

Fale sobre o autor Milton Rezende e sua obra.

Falar sobre a Obra do Milton, para mim, é fácil, por isso mesmo falarei pouco. É uma obra que de certa forma acompanhou minha própria escrita durante toda vida. Gosto de todos os livros dele, mas gosto mais de "O Acaso das Manhãs" e de "Areia". Sua forma de escrever é ácida, sem concessões. Seus poemas são mordazes, incrivelmente corajosos. Ele nunca poupa a si mesmo nem ao mundo. Milton vem da melhor tradição da poesia e prossegue com ela.
UM CÃO
Um cão latindo na noite
é sempre um cão.
Sem cor, sem nome e sem
significado
para quem o está ouvindo.
No entanto este cão
traz em seu latido,
sombras de milhões de outros cães
sintetizados
em uníssono noite adentro.[...]
(REZENDE, O acaso das manhãs. p.12)